A MOTIVAÇÃO DA ATUAÇÃO ADMINISTRATIVA E A ABERTURA DE PROCEDIMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA IN RFB Nº 1.986/2020

Artigo por Fernando Pieri Leonardo e Leandro Correia Santos

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

A atividade administrativa deve-se pautar de acordo com o ordenamento jurídico, em especial ao que preconiza a Carta da República de 1988 e as leis, ambas consideradas como fontes formais do direito.

Inserido na noção de respeito ao ordenamento jurídico, está o respeito e a observância aos princípios que regem a atuação administrativa, especificamente aqueles previstos na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37.

Nas palavras de JULIANO HEINEN, à noção de princípio, como categoria jurídica do Direito Administrativo, tem como características centrais: (i) funcionar como vetor interpretativo; (ii) como alicerce ao sistema jurídico; (iii) como um padrão normativo relevante e vinculativo; e (iv) a alta carga valorativa (HEINEN, Juliano. 2020. p. 145).

Nesse sentido, considerando a atual conjuntura que rege o Direito Administrativo em um Estado Democrático de Direito, os princípios têm sido elevados a condição de normas jurídicas, ao lado das regras, podendo ser invocados para controlar a juridicidade da atuação do Estado (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. 2013. p. 41).

A doutrina tradicional costuma dividir os princípios que regem a atividade da Administração Pública em EXPRESSOS e IMPLICÍTOS. Os primeiros, seriam aqueles expressamente previstos na norma jurídica, a exemplo do principio da legalidade (art. 37, CRFB/88) e da motivação (art. 2º, Lei nº 9.784/99). Os segundos consistiriam naqueles reconhecidos pela doutrina e jurisprudência, a exemplo dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica.

Com efeito, é dever da Administração Pública, quando no exercício de sua função administrativa, comumente desempenhada com a prática de atos administrativos, a espartana observância aos princípios expressos e implícitos que regem a relação de verticalidade desta com seus administrados.

Neste cenário, sabendo que a Administração Pública exerce suas atividades típicas com a edição de atos administrativos, importante trazer o conceito de ato administrativo e seus elementos de existência e validade.

Segundo ALEXANDRE DE ARAGÃO, “ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade no exercício de função administrativa, que tenha por fim imediato criar, modificar ou extinguir direitos ou obrigações”. (ARAGÃO. Alexandre Santos. 2013. p. 148)

Essa manifestação unilateral de vontade, segundo a doutrina, possui elementos (ou requisitos) que, quando presentes, têm o condão de atestar a existência ou a validade do ato administrativo, quais sejam:

 

  • ELEMENTOS DE EXISTÊNCIA: o ato administrativo existe se reúne elementos básicos, ditos constitutivos, após completar seu ciclo de formação. São elementos de existência: sujeito competente, objeto e forma;

 

  • ELEMENTOS DE VALIDADE: sujeito competente, objeto, finalidade, motivo e forma.

 

Ressalta-se que, para que o ato administrativo seja reputado como existente ou válido, imperioso a presença de seus elementos, conforme o caso, sob pena de ser considerado inexistente ou ilegal.

Levando-se em consideração o escopo do presente trabalho, ater-nos-emos tão somente ao elemento de validade do ato administrativo “motivo”, destacando-se, desde já, que esse elemento de validade é alçado pelo ordenamento jurídico à qualidade de princípio (da motivação).

 

II – MOTIVAÇÃO DA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO ADUANEIRA

 

Conforme já afirmado, os atos administrativos possuem elementos que têm como finalidade atestar no campo jurídico sua existência e/ou validade. Verificou-se, também, que o elemento motivo, é um elemento de validade, razão pela qual o ato administrativo será inválido se desprovido da existência e da exposição do motivo que lhe deu causa.

Segundo MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, o elemento motivo pode ser entendido como o pressuposto de fato (acontecimentos fáticos) e de direito (dispositivo legal) que serve de fundamento ao ato administrativo (DI PIETRO, 2019, p. 247). Já motivação, por sua vez, consiste na “exposição dos fatos e do direito que serviram de fundamento para a prática do ato”, i.e., cuida-se da exposição do motivo (DI PIETRO, 2019, p. 246).

Considerando os conceitos de motivo e motivação acima apresentados, salienta-se que a doutrina diverge quanto a obrigatoriedade do dever de motivação dos atos administrativos. RAFAEL CARVALHO REZENDE OLIVEIRA, apresenta as seguintes correntes (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. 2017. pg. 247):

1ª Corrente: Obrigatória para os atos vinculados e facultativa para os discricionários. (Hely Lopes Meirelles)

 

2ª Corrente: Obrigatória para os discricionários, tendo em vista a necessidade de controle da liberdade do administrador, sendo facultativa para os vinculados, em razão dos elementos conformadores já estarem predefinidos na legislação. (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello)

3ª Corrente (mais aceita): Todos os atos administrativos (vinculados e discricionários) devem ser motivados, tendo em vista o princípio democrático (art. 1º, parágrafo único da CF/88), a fim de permitir um maior controle social dos verdadeiros detentores do poder e o dever de motivação insculpido no art. 93, IX da CF/88, aplicação aos demais poderes quando do exercício da função administrativa. (Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello)

4ª Corrente: Inexistência de obrigatoriedade de motivação, salvo quando a lei assim o exigir, em razão da ausência de norma constitucional que exija motivação dos atos do Poder Executivo, devendo o art. 93, IX da CF/88 ser interpretado restritivamente. (Carvalho Filho).

5ª Corrente: Necessidade de motivação das decisões administrativas (atos decisórios), bem como para as hipóteses em que a lei expressamente exigir. Tal exigência seria fundamental para a garantia da moralidade e para facilitar o controle do ato (Diogo de Figueiredo Moreira Neto).

 

Não obstante a divergência doutrinária acima apresentada, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem acolhido a 3ª corrente, no sentido de que a motivação é, em regra, necessária, seja para atos discricionários ou vinculados (STJ, MS nº 13.948/DF, j. 26/09/2012).

Nessa toada, a Lei nº 9.784/1999 apresenta em vários de seus dispositivos, a necessidade de observância do princípio da motivação dos atos administrativos, quais sejam:

  1. A motivação é alçada como princípio, nos termos do art. 2º, caput, da Lei nº 9.784/99, que afirma que: “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”;
  2. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências, a qual deverá conter (…) VI – indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes (art. 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99);
  3. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V – decidam recursos administrativos; VI – decorram de reexame de ofício; VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo (art. 50, caput, da Lei nº 9.784/99) e essa motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato (art. 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99).

 

Na linha do que prescreve o art. 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99 supramencionado, pelo qual a motivação do ato administrativo deve ser explícita, clara e congruente, CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, assevera que, “não basta, pois, em uma imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato. Na motivação transparece aquilo que o agente apresenta como “causa” do ato administrativo.” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 395).

Ou seja, com base na definição de motivo e motivação, a luz do que prescreve a legislação infraconstitucional e a melhor doutrina administrativista, mencionar o dispositivo legal no ato administrativo, sem qualquer indicação e correlação deste com os fatos até então apurados pela Administração Pública, não consiste em motivação.

Registra-se que a apresentação clara, explícita, congruente, dos pressupostos de fato e de direito do ato administrativo é um direito do administrado, a fim de viabilizar eventual controle de legalidade do ato administrativo e a aplicação escorreita da chamada teoria dos motivos determinantes, consoante jurisprudência mansa e pacífica do eg. Superior Tribunal de Justiça:

 

(…) Nos moldes da jurisprudência desta Corte, “a motivação do ato administrativo deve ser explícita, clara e congruente, vinculando o agir do administrador público e conferindo o atributo de validade ao ato. Viciada a motivação, inválido resultará o ato, por força da teoria dos motivos determinantes. Inteligência do art. 50, § 1.º, da Lei n. 9.784/1999

(RMS 56.858/GO, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe 11/09/2018).

 

(…) O reconhecimento da ausência de motivação do ato administrativo e, por conseguinte, do flagrante cerceamento de defesa, não enseja ingresso no mérito administrativo, pois diz respeito à própria legalidade da atuação administrativa. Precedente: AgRg no REsp 1.062.902/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe 03/08/2009. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão, provido, para determinar o retorno dos autos a origem, para análise da questão atinente à fundamentação quanto aos erros de grafia.

(REsp 1.345.348/CE, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe 18/11/2014).

 

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MULTA. GRADAÇÃO DA PENALIDADE. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. EXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE.

(…) A fundamentação produzida no acórdão para anular a decisão administrativa que aplicou pena pecuniária à recorrida foi a ausência de motivação para a fixação de multa. Como demonstrado no acórdão recorrido, o ato administrativo questionado reputa-se eivado de ilegalidade, visto que insuficientemente motivado pelo órgão ambiental. Depreende-se que a análise perpetrada pelo juiz não foi sobre o mérito do ato administrativo, mas sobre a ilegalidade do ato administrativo produzido sem a devida motivação. RMS 40.769/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 7/2/2014.

(RECURSO ESPECIAL Nº 1.787.922 – ES, SEGUNDA TURMA, HERMAN BEIJAMIN, 26/02/2019)

 

Ainda sobre o princípio da motivação dos atos administrativos, vale colacionar didático e elucidativo voto do e. Ministro do STJ Napoleão Nunes Maia Filho, no MS nº 26464 – DF, julgado em 02/07/2020, nos seguintes termos:

 

(…) O legislador, ao regular o Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública, estabeleceu as diretrizes que devem ser seguidas na condução dos atos administrativos, determinando expressamente que a intimação dirigida ao interessado deve conter a indicação dos fatos e fundamentos legais que justificam o respectivo ato (art. 26, § 1º da Lei 9.784/1999).

 

O dispositivo se alinha ao princípio da motivação, que regula a condução dos atos administrativos que negam, limitam ou afeta direitos e interesses do administrado. É certo que o ato administrativo, para que seja válido, deve observar, entre outros, o princípio da impessoalidade, licitude e publicidade. Estes três pilares do Direito Administrativo fundem-se na chamada motivação dos atos administrativos, que é o conjunto das razões fáticas ou jurídicas determinantes da expedição do ato.

(…)

O motivo do ato administrativo é pressuposto de fato e de direito, servindo-lhe de fundamento objetivo. Não se confunde, contudo, com a motivação, que é o dever de exposição dos motivos, a demonstração de que os pressupostos de fato e de direito realmente existiram no caso concreto. A motivação, nos atos administrativos, é obrigatória e irrecusável, não existindo, neste ponto, discricionariedade alguma por parte da Administração.

 

A referida motivação deve ser apresentada anteriormente ou concomitante à prática do ato administrativo, pois caso se permita a motivação posterior, dar-se-ia ensejo para que se fabriquem, se forjem ou se criem motivações para burlar eventual impugnação ao ato. Não se deve admitir como legítimo, portanto, a prática imotivada de um ato que, ao ser contestado na via judicial ou administrativa, venha o gestor a construir algum motivo que dê ensejo à validade do ato administrativo.

 

Não se harmoniza com o princípio republicano e democrático que rege o ordenamento jurídico brasileiro, atribuir-se à Administração o livre alvedrio para agir ao seu exclusivo talante, sem levar em conta as necessárias correlações subjetivas com os indivíduos e os cidadãos; o controle de legalidade, no Estado Democrático de Direito não se exaure na simples e linear observância de formas e formulários, devendo focar a sua energia sobre os motivos e a motivação dos atos administrativos.

 

Deste modo, demonstra-se, claramente, a necessidade e obrigatoriedade da apresentação dos motivos do ato administrativo, sendo pois elemento de validade deste, sujeito a controle de legalidade por parte do cidadão e do Poder Judiciário, na hipótese de sua inobservância.

 

III – O PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS E A ABERTURA DE PROCEDIMENTO DE FISCALIZAÇÃO NOS TERMOS DA  INSTUÇÃO NORMATIVA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL Nº 1.986/2020

 

Diante das considerações introdutórias acima, chega-se à conclusão de que todo e qualquer ato administrativo deve ser motivado. Além disso, quanto a exposição desses motivos, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, não basta, pois, em uma imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 395), mas sim que essa exposição seja, nos termos do art. 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99, explícita, clara e congruente, sendo feita alusão ao conjunto das razões fáticas, ou jurídicas, determinantes da expedição do ato, conforme voto do e. Ministro do STJ Napoleão Nunes Maia Filho, no MS nº 26464 – DF, julgado em 02/07/2020, acima reproduzido.

Nesse diapasão, resta saber se, é dever da Autoridade Aduaneira motivar o ato administrativo que determinou a abertura (instauração) de procedimento de fiscalização de combate às fraudes aduaneiras, nos termos da IN RFB nº 1.986/2020, em face de pessoa jurídica interveniente no comércio exterior, e, em caso motivo, de que maneira deve ser essa motivação, com base no entendimento da doutrina e jurisprudência.

Inicialmente, importante trazer algumas considerações acerca do procedimento de fiscalização de combate à fraude aduaneira, previsto na IN RFB nº 1.986/2020.

Com o objetivo de regular acerca do procedimento de fiscalização utilizado no combate às fraudes aduaneiras, a presente instrução normativa substituiu as então conhecidas IN SRF nº 228/2002 e IN RFB nº 1.169/2011, que, até o ano de 2020, dispunham cada uma acerca dos procedimentos especiais de fiscalização aduaneira, sendo a primeira no que tange à verificação da origem dos recursos aplicados em operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta de pessoas, e a segunda, no tocante aos procedimentos especiais de controle, na importação ou na exportação de bens e mercadorias, diante de suspeita de irregularidade punível com a pena de perdimento.

Bem da verdade, ambas as instruções normativas regulavam os procedimentos especiais de fiscalização aduaneira, mais especificamente no combate às infrações de interposição fraudulenta de terceiros, sendo ambas, agora, unificadas em um único ato normativo.

Nesta toada, segundo o art. 2º, da IN RFB nº 1.986/2020, o Procedimento de Fiscalização de Combate às Fraudes Aduaneiras (PFCFA) poderá ser instaurado por Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, mediante ciência ao interveniente fiscalizado do termo que caracteriza o seu início, quando forem identificados indícios de ocorrência de fraude aduaneira.

Destaca-se, pela literalidade do dispositivo supramencionado, que a abertura do referido Procedimento de Fiscalização de Combate às Fraudes Aduaneiras (PFCFA) insere-se no âmbito da discricionariedade do Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (AFRFB), na linha do que dispõe o art. 6º, I, “c”, da Lei nº 10.593/2002, que prevê ser atribuição privativa do AFRFB executar procedimentos de fiscalização, praticando os atos definidos na legislação especifica, inclusive os relacionados ao controle aduaneiro.

Porém, vale ressaltar, que discricionariedade não se confunde com liberalidade. Em primeiro lugar, registra-se que poder discricionário não significa fazer tudo o que se deseja, segundo critérios de oportunidade e conveniência, mas sim, fazer tudo que a lei, diante das opções apresentadas, confere ao administrador fazer em atenção ao interesse público (SALES, Gustavo Fernandes. Manual de Direito Administrativo. 2021. p. 402).

Compreender discricionariedade com arbítrio, permitindo a prática de atos administrativos completamente desprovidos de fundamento fático e jurídico, quando a norma assim o impõe, remonta ao período sombrio do absolutismo estatal, comportamento totalmente inadmissível nos dias atuais. Nas palavras do Ministro do STF Ricardo Lewandowski, no MS 38081/DF, Dje 03/08/2021:

“(…) constitui direito fundamental do cidadão, em especial na qualidade de jurisdicionado, o de conhecer a motivação das decisões judiciais, sob pena de retornar-se ao voluntarismo dos agentes estatais, expresso na conhecida frase dos monarcas absolutistas franceses, que justificavam seus atos assentando: le roi le veut.”

 

Desta forma, ciente da discricionariedade conferida pela IN RFB nº 1.986/2020 ao AFRFB, quando da abertura do PFCFA, resta saber se essa discricionariedade é limitada, ou ilimitada, i.e., se a própria norma impõe requisitos e limites a atuação de instauração do procedimento de fiscalização pela Autoridade Aduaneira.

Consoante se verifica da leitura do próprio caput do art. 2º, o “Procedimento de Fiscalização de Combate às Fraudes Aduaneiras (PFCFA) poderá ser instaurado por Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (…) quando forem identificados indícios de ocorrência de fraude aduaneira”.

Ou seja, a instauração do procedimento de fiscalização somente poderá ocorrer “quando forem identificados indícios de ocorrência de fraude aduaneira”, de modo que, uma vez inexistindo a presença desses indícios de ocorrência de fraude aduaneira, deixam de subsistir os motivos autorizadores para sua instauração.

Todavia, surge uma incógnita que paira quando da recorrente instauração do PFCFA pelos AFRFB nas unidades aduaneiras em toda extensão do território aduaneiro, consistente na completa ausência no Termo de Início de Procedimento Fiscal da motivação que ensejou sua instauração. Comumente, costuma-se tão somente mencionar que o procedimento foi instaurado em razão de suspeita de infração punível com pena de perdimento, nos termos do art. 23, do DL nº 1.455/76, sem, contudo, serem apontados os pressupostos fáticos e jurídicos que levaram a compreensão de estarem presentes essas eventuais suspeitas.

Por óbvio, não se pretende no ato de instauração do procedimento de fiscalização, que sejam apresentadas provas robustas de eventual ocorrência de infração punível com pena de perdimento, mas tão somente que sejam apontadas as circunstâncias indicativas de que um fato existe, i.e., que se está diante de indícios, conforme preleciona Flávio Meirelles Medeiros (https://www.conjur.com.br/2018-mai-14/flavio-medeiros-conviccao-indicios-provas-sao-coisas-diferentes).

Nesta toada, a Receita Federal do Brasil, através da Portaria COANA nº 2, de 02/03/2005 – norma ainda em vigor – estabeleceu regras acerca da execução, o registro, o controle e o planejamento das atividades de pesquisa e fiscalização aduaneira (art. 1º).

Dentre as atividades compreendidas na execução, no registro, no controle e no planejamento das atividades de pesquisa e fiscalização aduaneira, encontram-se a: (i) pesquisa fiscal aduaneira, que consiste na coleta e análise de informações com vistas à seleção de sujeitos passivos para fiscalização e no preparo do procedimento fiscal; e (ii) a fiscalização aduaneira, que consiste na verificação do cumprimento da legislação por parte do interveniente, tanto no que diz respeito ao recolhimento dos gravames devidos à Fazenda Nacional, quanto às demais obrigações decorrentes da realização de operação no comércio exterior, que pode ter como resultado (art. 2º, I e II).

Para efeito do item “ii”, acima, considerava-se “fiscalização aduaneira”, à época: os procedimentos especiais de controle definidos nas Instruções Normativas SRF nº 52, de 08 de maio de 2001, nº 206, de 25 de setembro de 2002 e nº 228, de 21 de outubro de 2002 (art. 2º, § 1º, III). Mutatis mutandis, onde se lê IN SRF 206/2002 e 228/2002, deve-se ler IN RFB nº 1.986/2020, que substituiu as referidas normas infralegais.

Nesse diapasão, considerando que a atividade de fiscalização aduaneira levada a cabo pela IN RFB nº 1.986/2020, deve observância aos ditames do ato normativo expedido pela COANA (Portaria COANA nº 2/2005), tem-se que o AFRFB somente irá instaurar o PFCFA quando verificáveis os indícios descritos na referida norma. E como se verifica a presença desses indícios?

Em primeiro lugar, é realizada através do órgão central (CORAD ou COANA) aquilo que se denomina de “Pesquisa Fiscal Aduaneira”, que será executada com base nas linhas e projetos de pesquisa definidos no Anexo I da Portaria COANA nº 2/2005, dispostos nos grupos elencados nos incisos do art. 3º da referida Portaria, dentre eles a verificação do sujeito passivo: têm por objeto constatar a existência de fato, a origem dos recursos aplicados e a capacidade operacional do interveniente, além de combater a interposição fraudulenta de pessoas no comércio exterior (art. 3º, I).

Em segundo lugar, diante do resultado dessa pesquisa fiscal será registrado em um “Dossiê de Pesquisa Fiscal Aduaneira (DPFA)”, que servirá de base para a instauração da ação fiscal, e deverá discriminar minimamente as seguintes informações (art. 4º):

I – identificação e porte do sujeito passivo;

II – motivação e abrangência da pesquisa;

III – indicação das declarações aduaneiras e respectivas adições que serão objeto de análise fiscal ou do período a fiscalizar, conforme o caso;

IV – descrição dos indícios de infração que justificam ações fiscais pertinentes;

V – indicação da operação fiscal adequada;

VI – descrição dos resultados esperados;

VII – estimativa da evasão tributária ou do volume de operações irregulares;

VIII – estimativa de recuperação do prejuízo tributário, face à capacidade patrimonial do sujeito passivo e, se for o caso, dos seus sócios;

IX – montante dos débitos tributários existentes em nome do sujeito passivo e, se for ocaso, a indicação da necessidade de formalização de Comunicação de Débitos, conforme modelo constante do Anexo IV à Instrução Normativa SRF nº 264, de 20 de dezembro de 2002; e

X – indicação de pessoas relacionadas com a infração para qual foram demonstrados indícios ou que sejam solidariamente responsáveis com o sujeito passivo.

 

Nota-se que, dentre as inúmeras informações coletadas quando da pesquisa aduaneira para a instauração da ação fiscal pertinente, deve ser consignado nesse “Dossiê de Pesquisa Fiscal Aduaneira (DPFA)”, a descrição dos indícios de infração que justificam ações fiscais pertinentes (art. 4º, inciso IV)”, além de outras informações conforme disposto nos incisos do art. 4º supramencionado.

Deste modo, e na linha do que dispõe a doutrina, a jurisprudência e a Lei nº 9.784/99, a referida Portaria assevera, em seu art. 7º, que: “para os efeitos desta Portaria, considera-se motivação a circunstância ou fato que dá origem ao procedimento fiscal (…)”, razão pela qual a Fiscalização Aduaneira, quando da instauração do PFCFA, previsto na IN RFB nº 1.986/2020, deverá apresentar as circunstâncias de fato que deram origem a instauração do referido procedimento, dentre elas descrevendo de forma explícita, clara e congruente (art. 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99) os indícios de infração que justificam aquela ação fiscal (art. 4º, IV, Port. COANA nº 2/2005 c/c art. 2º, da IN RFB nº 1.986/2020).

Não é por outra razão, que os Tribunais Regionais Federais têm rechaçado a instauração deliberada e imotivada de procedimentos fiscais no âmbito aduaneiro, senão vejamos:

 

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PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. PROCEDIMENTO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO. IN SRF 228/2008. MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. OBRIGATORIEDADE. HABILITAÇÃO. IMPORTAÇÃO. EXPORTAÇÃO. LIMITES E SUJEIÇÕES. CONFERÊNCIA ADUANEIRA. PRAZO ATÉ 180 DIAS. JUSTIFICATIVA NECESSÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÕES AMPLAS E DE GENERALIZAÇÃO DE SITUAÇÕES. 1. Em obediência aos comandos constitucionais do princípio da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, afigura-se indispensável a motivação do ato administrativo vinculado, que enseja a abertura de procedimento especial de fiscalização alfandegária que possa resultar em pena de perdimento dos bens importados por particular. 2. A medida alfandegária de fiscalização especial prevista na Instrução Normativa SRF 228/2002 não viola direitos da sociedade fiscalizada quando devidamente justificada a motivação para a sua aplicação, como no caso da verificação de indícios de ocultação do sujeito passivo. (…) (TRF-1 – AI: 00565529720124010000, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA DO CARMO CARDOSO, Data de Julgamento: 14/03/2014, OITAVA TURMA, Data de Publicação: 28/03/2014)

 

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ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INTRUMENTO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. SUPOSIÇÃO DE IRREGULARIDADE. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. NÃO COMPROVAÇÃO EM ANÁLISE PRELIMINAR DE ATIVIDADES QUE ENSEJEM A APLICAÇÃO DA PENA DE PERDIMENTO. AGRAVO PROVIDO. 1. Agravo de instrumento com pedido de antecipação de tutela recursal, em face de decisão que, em ação mandamental contra ato do Inspetor de Alfândega no Porto de Pecém, indeferiu o pedido de liminar para que a autoridade impetrada proceda ao desembaraço aduaneiro das mercadorias constantes da Declaração de Importação (DI) nº 13/1702525-5. 2. O cerne da presente questão é a possibilidade ou não de se proceder ao desembaraço aduaneiro de mercadoria constante da DI 13/1702525-5, por suposta irregularidade punível com pena de perdimento. 3. Ao particular, ao sofrer alguma restrição por parte da Administração Pública, ou ser por ela atingido, deve ser oportunizado momento de defesa, em atendimento aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 4. Os atos administrativos são motivados, de modo que a autoridade fiscal deve justificar, especificadamente, as suas razões de decidir. Uma fundamentação genérica é insuficiente para a sustentação de pena tão grave como a de perdimento de mercadorias. 5. “De acordo com o Termo de Retenção e Início de Fiscalização n.º 001/2013, a retenção da mercadoria objeto da DI 13/1702525-5 teve por fundamento as disposições do art. 68 da Medida Provisória n.º 2.158-35/2001, do art. 794 do Regulamento Aduaneiro (Decreto n.º 6.759/2009) e do art. 1º da Instrução Normativa SRF n.º 1.169/2011.”. 6. “Cumpre examinar, ainda que em sede de juízo preliminar, (…) se a motivação apresentada pela autoridade impetrada atende as exigências fixadas nos dispositivos legais e regulamentares em evidência, e, além disso, se o procedimento adotado pelo Fisco está em conformidade com as demais normas e princípios que regem a Administração Pública.“. 7. “(..) a retenção da mercadoria para fins de apuração de eventuais ilegalidades exige a presença de indícios de infração punível com a pena de perdimento.”. 8. “(…) em respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, impõe-se que o servidor encarregado da fiscalização aponte concretamente quais os elementos que o levaram a concluir pela existência de indícios ou suspeita de irregularidades na importação.”. 9. “(…) para que seja reconhecida a legalidade da retenção de mercadorias, é necessária a indicação de um mínimo de elementos concretos capazes de conduzir à aplicação da pena de perdimento.”. 10. Verifica-se, em análise preliminar, que “são apenas feitas referências vagas e imprecisas a suspeita de vício na autenticidade de qualquer documento comprobatório apresentado, tanto na importação quanto na exportação, inclusive quanto à origem da mercadoria, ao preço pago ou a pagar, recebido ou a receber.”. 11. Ausência de verificação de prática de atividades, pela empresa agravante, que ensejem a aplicação da pena de perdimento. 12. Agravo de instrumento provido. (TRF5. Acórdão. Processo nº 0043702-63.2013.4.05.0000;. Órgão Julgador: Quarta Turma. Relator (a): Desembargador Federal Emiliano Zapata Leitão; Data do julgamento: 11/02/2014. Data de publicação: 20/02/2014)

 

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PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RETENÇÃO DE CARGA NA ALFÂNDEGA. SUSPEITA DE OCULTAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DOS INDÍCIOS DE FRAUDE. DESEMBARAÇO DA CARGA. 1. O agravo de instrumento manejado por DELSUR ALIMENTOS LTDA. – EPP fustiga decisão interlocutória que, em sede de mandado de segurança, indeferira o pleito in limine litis, o qual pretendia o desembaraço aduaneiro de carga de alimento perecível (uva passa) acondicionado em contêiner, no âmbito da Alfândega do Porto de Pecém/CE, tendo determinado a autoridade coatora impetrada que fosse retida a carga em tela e iniciado procedimento especial de controle aduaneiro, com fulcro no art. 2º da Instrução Normativa/RFB nº. 1.169/11, por intermédio do Termo de Retenção e Início de Procedimento Especial nº. 07/13, sob o argumento de que haveria suspeita de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou do responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiro, irregularidade essa que, se comprovada, dá ensejo à pena de perdimento da carga aludida. 2. A princípio, é possível se depreender do excerto transcrito que está autorizada a Receita Federal, através de Inspetor de Alfândega, a reter as mercadorias importadas, caso perceba a existência de indícios de infração punível com a pena de perdimento. Entretanto, para que isso ocorra regularmente, deve se exigir a constatação concreta, por parte da autoridade, de tais indícios, implicando também a fundamentação e motivação de tal ato, no que atine à abertura de investigação mais especializada e aprofundada. 3. No sentido do que sustentara a empresa agravante, em cotejo com a dicção do referido ato infralegal, é necessário que se constate efetivamente quais indícios apontam para a irregularidade a ser apurada, bem assim é imprescindível que a abertura de procedimento especial seja motivada ou fundamentada explicitamente. Nessa senda, a criação de procedimento especial de controle aduaneiro deve ser cientificada ao importador fiscalizado e deve demonstrar, em seu conteúdo, quais são as irregularidades detectadas, em específico, que deram ensejo à essa investigação e quais as mercadorias são objeto do procedimento especializado. Em outros termos, há expressa menção à necessidade inquebrantável de se motivar detalhadamente a instauração da fiscalização em testilha. 4. In casu, não pode ser considerada suficiente apenas a fundamentação legal trazida a lume, qual seja, a de que o procedimento especial de investigação aduaneira fora aberto por conta de suspeita da fiscalização no que atine à ocultação do verdadeiro adquirente das mercadorias, como sugere o inciso IV, do art. 2º, da referida Instrução Normativa (“IV – ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiro;”). Em casos que tais, é imperioso que se faça presente a adequada fundamentação, por parte do Inspetor da Alfândega, no que diz respeito aos motivos especificamente considerados para que se retivessem as mercadorias em tela, mormente quando a empresa impetrante já suscitara, de plano, que: i) é a real adquirente da carga de uva passa, uma vez que importa, frequentemente, esse produto retido; ii) todos os documentos de importação estão em seu nome (B/L e INVOICE); e iii) que os tributos aduaneiros foram debitados diretamente de sua conta corrente. Demonstra-se, assim, a verossimilhança das alegações da empresa agravante a viabilizar o pleito antecipatório pretendido. 5. De outra banda, cumpre considerar o fato de que as mercadorias são perecíveis e há, evidentemente, iminente prejuízo a se concretizar em desfavor da importadora impetrante em decorrência dessa retenção injustificada, mormente em face da época natalina, durante a qual há grande comercialização do produto de que se cuida (uvas passas). Configura-se, desta feita, o perigo da demora a ensejar a medida de urgência que se persegue. Sem embargo da liberação da mercadoria, mercê do desembaraço, tal não impede que a Administração proceda às investigações que julgar necessárias. 6. Agravo de instrumento parcialmente provido, tão só para determinar o desembaraço aduaneiro da carga. (TRF-5 – AG: 8028341020134050000, Segunda Turma, Relator: Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro, Data de Julgamento: 25/03/2014,)

 

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ADMINISTRATIVO. IMPORTAÇÃO DE MERCADORIAS. PROCEDIMENTO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO. IN/SRF Nº 206/02. TERMO DE RETENÇÃO. LEGITIMIDADE. AUSÊNCIA DEMOTIVAÇÃO. ILEGALIDADE.

  1. O ordenamento jurídico pátrio revela-se coeso e coerente no que diz respeito ao estabelecimento de regras e procedimentos para o controle do comércio exterior, bem como no tocante às formas de fiscalização das operações de importação e exportação.
  2. Os dispositivos que ampararam a atuação do Fisco legitimam, em tese, a adoção de procedimento especial de controle aduaneiro (arts. 65 e ss, da IN/SRF nº 206/02) e a retenção da mercadoria importada até o término da fiscalização. Precedente do STJ.
  3. Todavia, a validade da atuação da autoridade fiscal encontra-se inarredavelmente vinculada à observância dos requisitos do ato administrativo. Não constando do termo de retenção o apontamento de qualquer fato apto a respaldar sua prática, fica caracterizado o vício de motivação, impondo-se a anulação do ato administrativo. Precedentes do TRF3 e do STJ. 4. Apelação e remessa oficial improvidas. (TRF 3 – Apelação Cível nº 0004540-78.2009.4.03.6104/SP, Sexta Turma, Rel: Desembargadora Federal Mairan Maia, 30/04/2015)

 

Ademais, diante do voto da Exma. Desembargadora Federal Relatora da Sexta Turma do TRF 3ª Região,  Mairan Maia, no último precedente reproduzido acima, válido colacionar a didática lição apresentada. Confira-se:

 

“(…) a validade da atuação da autoridade fiscal encontra-se inarredavelmente vinculada à observância dos requisitos do ato administrativo e, na hipótese concreta, o termo de retenção lavrado revela inequívoca ofensa ao princípio da motivação, apta a eivá-lo de ilegalidade, ante a total ausência de indicação dos fundamentos fáticos que respaldaram a prática do ato.

Nos três primeiros termos de intimação encaminhados à autora, limita-se a autoridade impetrada a requisitar informações e documentos atinentes à empresa, seu sócio majoritário e à operação de importação entabulada, sem apontar qualquer elemento concreto que justifique as suspeitas de irregularidade. Consta das referidas intimações apenas a referência aos dispositivos legais que subsidiaram as solicitações.

Cumpre destacar que, não obstante a apresentação de farta documentação pela empresa autora – que atende, em princípio, aos requerimentos feitos pelo órgão fiscal – a autoridade administrativa não tece nenhuma consideração sobre os documentos levados a seu conhecimento, limitando-se, nas intimações seguintes, a requisitar informações complementares. Tão somente nas duas últimas intimações o agente administrativo efetua algum exame das provas previamente entregues e expõe os motivos para o pedido de novos esclarecimentos e documentos.

Nesse particular, digno de registro que, em mais de uma ocasião, a autoridade solicita documentos já requeridos em anteriores intimações ou que já foram ofertados pela autora, evidenciando, assim, falta de zelo na condução da fiscalização e de atenção aos elementos de prova apresentados pela investigada.

A par dessas considerações, transcorridos quase quatro meses da primeira intimação, a autoridade fiscal lavrou o termo de retenção dos bens importados, sem indicar, porém, qualquer justificativa fática idônea a amparar esse ato, restringindo-se a mencionar a realização da retenção dos bens com base no Art. 65 e inciso I e V do artigo 66 da IN SRF nº 206/02 (fl. 360).

Avulta-se, assim, de modo manifesto o vício de motivação que impinge o termo de retenção lavrado.

Isso porque a lavratura do termo de retenção consubstancia inequívoco ato administrativo, decorrente do exercício de poder de polícia. A imposição dessa limitação pela Administração na consecução desse mister, por sua vez, configura nítido ato administrativo restritivo da esfera jurídica do administrado.

Como tal, exige não apenas a enunciação do motivo do ato – tido como o pressuposto de fato que autoriza ou exige sua prática – e sua correlação lógica com a finalidade almejada, mas, sobretudo, a efetiva ocorrência fática do motivo exposto. (…)

Logo, demonstrado o vício imputado, ilide-se a presunção juris tantum de legalidade e legitimidade de que goza o ato administrativo questionado”.

 

Nesta hipótese, restando ausente de motivação o ato administrativo que desencadeou na abertura do procedimento de fiscalização e combate a fraude, este reputa-se como ilegal, nos termos da jurisprudência do eg. STJ, anteriormente citada (RECURSO ESPECIAL Nº 1.787.922 – ES, SEGUNDA TURMA, HERMAN BEIJAMIN, 26/02/2019). Em sendo ilegal, deixa o mesmo de gozar da presunção de legalidade e legitimidade, presente nos atos administrativos em geral.

Desta forma, nulo de pleno direito o ato administrativo de instauração do procedimento de fiscalização e combate a fraude, anula-se todos os atos subsequentes, inclusive eventual auto de infração lavrado a partir dele, nos termos da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais do país.

 

IV – CONCLUSÃO

 

Em sendo assim, diante das razões acima apresentadas, depreende-se que todo ato administrativo que instaura o PFCFA – Procedimento Fiscal de Combate às Fraudes Aduaneiras em face do importador, por se tratar de medida restritiva de direitos no exercício do poder de polícia aduaneira, deve vir acompanhado da escorreita motivação, nos moldes delineados pela legislação, doutrina e jurisprudência, conforme vimos de ver alhures.

 

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Referências:

  • HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. Ed. Juspodvim. 1ª Edição. Salvador, 2020;
  • OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios de Direito Administrativo. Método. 2ª Ed., São Paulo. 2013;
  • OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Método. 5ª Ed., São Paulo. 2017;
  • ARAGÃO. Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. Método. 2ª Ed. 2013;
  • BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 26ª e 27ª Edição. 2008 e 2009;
  • DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. Método. 32ª Ed., São Paulo. 2019;
  • SALES, Gustavo Fernandes. Manual de Direito Administrativo. Editora CEI. Salvador. 1ª Ed. 2021.
  • stj.jus.br;
  • trf1.jus.br;
  • trf3.jus.br;
  • trf5.jus.br;