Artigo de Fernando Pieri Leonardo publicado no Conjur
Embalados pela sonoridade da nossa coluna Território Aduaneiro, hoje vamos com Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré [1], e ritmados com o seu refrão “quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”. É que o momento atual traz a premência da reflexão e das mudanças necessárias ao nosso sistema sancionatório aduaneiro.
Para aquilatar a complexidade do nosso sistema sancionatório aduaneiro, recomenda-se a leitura do artigo Uma contribuição à visão Integral do Universo de Infrações e Penalidades Aduaneiras no Brasil, na Busca pela Sistematização, de autoria de Rosaldo Trevisan. Ali o autor destaca as modalidades de penalidades aduaneiras seguindo o RA/09 — multa, perdimento e sanções administrativas, o número de infrações existentes e promove analíticas considerações em relação a todas elas [6]. Esse aparato repressor é conhecido e vivenciado pelos intervenientes que se ressentem, fortemente, quando são penalizados tendo agido sem nenhuma intenção de descumprir as normas aduaneiras, com amplo histórico de cumprimento das suas obrigações, e em situações em que todos os tributos devidos foram recolhidos, assim como apresentadas as informações essenciais e relevantes, sendo apenados, ao fim e ao cabo, por erros, que não representam qualquer ameaça ao controle aduaneiro. Por que são penalizados? Porque vigora e viceja, há muito, a ideia de um caráter objetivo no Direito Aduaneiro Sancionador, o que é rechaçado pela melhor doutrina. Cotter, estudioso das infrações aduaneiras, leciona: “la premisa debe ser que no existe sanción sin culpa” [7]. Analisando as infrações aduaneiras à luz do AFC e da CQR, o jurista argentino conclui que “tanto el Convenio Kyoto revisado como el Acuerdo sobre Facilitación del Comercio afirman que no hay sanción sin culpa. De alguna manera podríamos sostener que se pronuncian sobre el criterio de responsabilidad subjetivo” [8].
Mais algumas estrofes da nossa canção. O tema nos leva à reflexão sobre a existência e o necessário reconhecimento do Direito Aduaneiro Sancionador, a exemplo dos já consagrados Direito Administrativo Sancionador e Tributário Sancionador. Sua existência está reconhecida e jungida ao reconhecimento do próprio direito material subjacente, o Direito Aduaneiro. As normas materiais com prescrições deônticas de permitido, proibido e obrigatório [9] têm conteúdo aduaneiro. A eleição do prescritor e descritor na norma jurídica tem essência aduaneira, ramo autônomo e específico do direito [10]. Portanto, os ilícitos e as sanções são, igualmente, aduaneiros. Para conclusões desse jaez, podemos nos arrimar nas elocubrações científicas de autores nacionais que se debruçaram sobre o direito sancionador [11]. O que permite qualificar uma sanção de aduaneira é a natureza jurídica da infração relacionada a deveres e obrigações dessa natureza.
Nessa mesma toada, registre-se a urgente e pertinente necessidade de aplicação dos princípios e garantias constitucionais inerentes ao Estado Democrático de Direito e conformadores do exercício do ius puniendi do Estado. Mais notoriamente e reconhecidos como aplicáveis ao Direito Penal, devem limitar e regular, em justa medida, também o exercício das potestades administrativas. Assim, seja nas infrações administrativas, tributárias, ambientais, eleitorais e aduaneiras, princípios como os da estrita legalidade, da tipicidade, da vedação à analogia in mala partem, da retroatividade benigna, da presunção de inocência, da verdade material, da proporcionalidade, da individualização, da dosimetria e da pessoalidade da sanção urgem serem avaliados e aplicados, sob pena de arbítrios e inconstitucionalidades [12].
A relação entre a aduana e o setor privado evoluiu enormemente nos últimos onze anos. Desde 2011, talvez por força de lideranças de vanguarda e outros fatores externos e internos, a prevalência da desconfiança vem sendo cedendo à confiança. Um marco nesse processo é a instituição do Programa OEA, em dezembro de 2014 [13]. Uma quebra do modelo da velada certeza da má-fé dos intervenientes, especialmente do importador, pela eleição da premissa da boa-fé. Fruto dessa árvore promissora é o Programa Nacional da Malha Aduaneira (PNMA) que permitiu à aduana alertar o interveniente de indícios de infração aduaneira, permitindo-lhe a reavaliação da conduta e sua denúncia espontânea, com recolhimento de diferença de tributo, sem aplicação de multas. Exemplos da relação de confiança e de concretização do paradigma internacional da agenda de facilitação comercial.
As duas marcantes iniciativas estão intimamente relacionadas com a matriz de risco aduaneiro adotada pela OMA e pela OCDE. Nessa avaliação da conduta e categorização, aos que ocupam o lugar de comprovada boa-fé, cujos descumprimentos eventuais às normas decorrem de erros formais, não intencionais, menores, nos dizeres do ATEC, artigo 15.4, do seu Anexo I, não se deve aplicar penalidades. Nesses casos, ainda, faz-se mister a aplicação da dosimetria das penas e da proporcionalidade. Bom verificarmos que, em várias decisões judiciais, a existência, ou não, de culpa pelo agente tem sido elemento decisivo para a revisão de penalidades aplicadas. Vejamos o seguinte julgado do STJ, REsp. nº 1.417.738 – PE [14], relatado pelo ministro Gurgel de Faria, com afastamento da aplicação de pena de perdimento. As razões da decisão foram a desproporcionalidade entre a sanção aplicada, a comprovação de erro involuntário e de ausência de dano ao erário, de dolo, má-fé ou intenção de fraudar a legislação aduaneira.
Nessa linha e rumo, devemos seguir, a exemplo da canção, sabendo a hora e não esperando para agir. A administração aduaneira, pródiga em avanços na facilitação comercial, que vem quebrando paradigmas com o OEA, a malha aduaneira, DU-E, Duimp e tantas outras iniciativas, deve também, nessa harmonia, promover a revisão das normas sobre as infrações e as penalidades aduaneiras, reconhecendo que não é legítimo e não são atendidos os padrões internacionais quando, por exemplo, aplicam-se multas de 1% previstas no artigo 711, inciso III, do RA/09, a pequenos erros, de ínfima relevância efetiva, no preenchimento de declarações de importação, ou de exportação. O auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil age de forma vinculada, portanto urge a alteração legislativa que lhe dê o amparo e a segurança para, em tais casos, em que a boa-fé e o erro escusável estão nítidos, abstenha-se do lançamento de ofício e da aplicação de multas. Esses autos, quando lavrados, são contestados e levarão muitos anos para serem julgados, onerando o Estado e o interveniente. Entretanto, o seu efeito imediato é devastador: desgasta a relação de confiança do interveniente na aduana. Promove uma sensação indesejada, a de injustiça! Da irrazoabilidade, do excesso injustificado de punição. Ninguém lida bem com essas sensações. Não à toa, a quase totalidade dos membros da OMC (154) aderiram ao Pacote de Bali e 133 dos membros da OMA aderiram à Convenção de Quito Revisada, ambos os tratados, como vimos, com tópicos específicos sobre as penalidades aduaneiras.
Por fim, valemo-nos da canção para entoar o hino da certeza da mudança que há no porvir, na letra da nossa coluna também de semana passada: “amanhã é outro dia” [15], destacando a necessidade ainda do intérprete de ajustar o seu olhar. Se o intérprete da norma aduaneira permanecer entendendo-a como repressora, não conseguirá compreender o direito como instrumento de promoção da justiça, que efetivamente é. Vale recordar artigo escrito por André Folloni, em 2008, ao advertir ser necessário ao intérprete alterar preconcepções do direito como aparato repressivo, para situar-se em um horizonte hermenêutico do estado democrático de direito e com o sistema jurídico contemporâneo, incentivador e promotor; caso contrário, o intérprete continuaria “a olhar para o novo com olhos velhos, com visão turva, e interpretação equivocada” [16]. Quem sabe faz a hora não espera acontecer!
[1] Música do paraibano Geraldo Vandré que se tornou símbolo da resistência contra o regime militar nos anos de 1968 e seguintes. Aqui lembrada para fazer referência ao período berço do Decreto-Lei nº 37/1966 e da definição do sistema sancionatório tributário (art. 136, CTN, de 1966) e aduaneiro (art. 94, §2º, DL 37/66).
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-27/territorio-aduaneiro-amanha-outro-dia-direito-aduaneiro-sancionador
[3] Decreto no 11.092/2022, promulgou o Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica entre o Brasil e os Estados Unidos da América relacionado a Regras Comerciais e de Transparência. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2022/decreto-11092-8-junho-2022-792807-norma-pe.html
[4] Facilitação comercial como sendo o “conjunto de medidas utilizadas com a finalidade de tornar o comércio entre os países mais acessível, visando uma variedade de esforços para reduzir os custos do comércio transfronteiriço“. In MORINI, Cristiano; MACHADO, Luiz Henrique Travassos; FERNANDES, Rodrigo Mineiro; e TREVISAN, Rosaldo. A Linha Azul no Brasil: diagnósticos e desafios, Caderno de Finanças Públicas, n. 13, Brasília, 2013, p. 37-68. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3815/1/Cadernos%20de%20Finanças%20Públicas%20n.%2013%20Dez%202013.pdf. Acesso em 22/07/2022, p. 46.
[5] AFC/OMC: artigo 6; 6.3. CQR/OMA: Capítulo 3, norma 3.39 e 10.5. ATEC: Anexo I, Capítulo 15.
[6] TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, 1ª ed. p. 571-630.
[7] COTTER, Juan Patrício. La responsabilidade en matéria infraccional. CARRERO, Gérman Pardo, Director. Derecho Aduanero – Tomo II. Bogotá: Tirant lo Blanch, 2020, p. 773.
[8] COTTER, Juan Patrício. La influencia de los Tratados Internacionales em las Infracciones Aduaneras. In TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, 1ª ed. p. 185. No mesmo sentido: SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. São Paulo: Forense, 2021, p. 402.
[9] GRECO, Marco Aurélio. Norma jurídica tributária, São Paulo: EDUC, Saraiva, 1974, p. 20. VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 69.
[10] FLORIANO, Daniela e BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. “Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus princípios informadores“. In: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 17-58.
[11] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 118. MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007.
[12] MELLO, Rafael Munhoz de, obr. cit, p. 104 -105.
[13] LEONARDO, Fernando Pieri. “Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado e o desenvolvimento do Pilar Aduana – Empresa do Marco Safe da OMA”. In TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 381-429.
[14] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201303760162&dt_publicacao=15/05/2019. Trecho do voto do min. Gurgel de Faria: “O que se anota é suficiente à conclusão de que a intenção do agente, a que se refere o § 2º do art. 94 do DL n. 37/1966, apta a atrair a responsabilidade pela infração correlata, é irrelevante somente quando o ato praticado oportuniza, efetivamente, o dano ao erário. (…) A observância ao princípio da proporcionalidade, portanto, é imanente à aplicação da pena pela autoridade aduaneira, visto que a autoridade julgadora não pode se afastar desse princípio por ocasião do julgamento administrativo”.
[15] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-04/territorio-aduaneiro-debate-instrucao-normativa-valoracao-aduaneira
[16] FOLLONI, André Parmo. Normas aduaneiras: estrutura e função. In TREVISAN, Rosaldo. Temas Atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex Editora, 2008, p. 81-90.